9 de março de 2014

A inesquecível noite que o Relicário de Cimento se fez concreto com a lágrima dos ausentes.




Por Rodrigo Ferret

O que você faria se chegasse a um espaço teatral em cima da hora, pensando que estava atrasado, e descobrisse que você era o único público presente? 
Sim, teria que escolher entre a tristeza da falta de público ou a alegria de algo inédito: ter uma apresentação teatral só para você!
Na entrada todo cuidado da produção: meia-luz, banner, panfletos, folders, um manequim assustador oferecendo emprego numa fábrica de cimento, uma ficha de emprego...sim, toda fábrica precisa de mão de obra.  
Estou preenchendo minha ficha de emprego, intrigado com a quantidade de perguntas que apesar de absurdas faziam todo sentido, quando sou perguntado por uma atriz: 
Vocês querem assistir a peça? 
Olho para trás e para os lados e falo: Vocês quem?  
Me senti naquele momento o ultimo jogador a chegar a uma pelada (aquele que completa o quorum, sem o qual todos irão para casa sem jogar), como o namorado que se atrasa, como a noiva que demora a chegar, mas chega. Eu, um humilde e apaixonado amante do teatro, poderia salvar aquela noite, aquela apresentação. Toda uma estreia dependia do meu sim.
– Claro que quero!
Com a ficha na mão, adentro o espaço cênico, acompanhado do ator, cuja personagem é formada em poesia silenciosa, que irá tentar um emprego naquela fábrica.
Na entrada, sou recebido por um “Queixada” (trabalhador da fábrica e morador da cidade) em sua eterna luta contra os Pelegos (também trabalhadores da fábrica e moradores da cidade), em pontos de vista que coexistem e se confundem (ambos sonhadores e sofredores), que com sua voz potente e muita eloquência me convida a entrar na fábrica e mergulhar em um sonho de cimento, de lágrimas, reflexões, resignação, lutas de classe (o Povo sempre recebendo as moedinhas que caem no chão e os Donos lucrando com o sofrimento alheio), dilemas, um mundo de dualidade. 

Rapidamente, sou absorvido pelo espetáculo lúdico e poético, que nos alimenta de reflexões sobre o que somos, sobre a nossa eterna luta entre viver e sobreviver, entre não querer ser pedra e ter que respirar cimento, entre ir e ficar, parar ou continuar.
Com referências às obras “Quando as máquinas param”, do Bendito Maldito Plínio Marcos e “Eles não usam black-tie”, de Gianfrancesco Guarnieri, Relicário do Concreto, mesmo sendo baseado em memórias e fatos ocorridos há mais de meio século, trata de temas que nunca deixarão de ser atuais, por que, antes de mais nada, trata da essência do ser humano.
A montagem, que prima pela simplicidade e criatividade, é muito bem cuidada, fundindo um trabalho corporal intenso e apaixonado dos atores (observando-se diversos exercícios cênicos) com um texto complexo, lírico e poético, embalado por uma trilha sonora lúdica que emociona, nos levando a um passeio pela sombria e protetora fábrica de cimento. A mesma que gera o progresso e destrói, a que gera emprego e traz a doença e o caos. A que desenvolve uma cidade e traz consequências terríveis, assim como quer o espírito da oligarquia, que aparece em cena, para dizer o que pensa.
Acabamos todos nós, sendo parte da dualidade encenada, somos um pouco Queixada, um pouco Pelego. Mesmo sabendo que não podemos comer cimento, que não queremos virar pedra, sabemos que cada telhado endurecido pelo concreto é um escudo protetor para nossos sonhos.
 Missão cumprida. Salvamos a noite. O Grupo Pandora apresentou a peça como se o Teatro estivesse lotado, se entregando de corpo e alma. Eu, ao final, aplaudi de pé e bati palmas como se fosse uma multidão. Por que Teatro é para um é para um milhão. Certamente, os Deuses do Teatro se alegraram e os retribuirão. Com nossa alma (cheia de cimento do dia-a-dia) lavada nos abraçamos e conversamos sobre a noite inesquecível. 

O sucesso e o fracasso não dependem de quantas pessoas vieram assistir e prestigiar uma peça, mas, com o respeito, dignidade e carinho com que se trata a arte.
Parabéns, ao Grupo Pandora – São Paulo, aos atores Filipe Dias, Nessah de Alvarenga, Rodolfo Vetore e Thalita Duarte, ao diretor Lucas Vitorino, ao dramaturgo Vince Vinnus e Equipe técnica. Obrigado, de coração, pela noite mágica e emocionante que vivemos.
Os Deuses do Teatro viram tudo...

Um comentário:

Michelle disse...

Esse texto diz tanto... da nossa realidade brasileira, de nós humanos... da cultura e seus passos, da vida. vida . vida!